I
A prostituta chamava-se Emma e, apesar da origem russa, adotara um nome francês. Sua pele clara e os cabelos de tom albino atraíam quase todas as atenções com os movimentos de dança que lembravam um ballet clássico, a despeito da lascívia de cada passo. Naquela noite, o cassino – um palacete centenário do Centro Histórico que um dia já abrigara a prefeitura da cidade – estava cheio; os homens mais importantes e também os mais medíocres tinham deixado suas casas, suas famílias para comungarem juntos daquele espetáculo.
As vozes que se ouviam era, quase em sua totalidade, indistintas, fosse pelo álcool, pelo medo de ser reconhecido ou pela simples esbórnia, ninguém se reconhecia à meia-luz. Na roleta, vozes faziam apostas altas, blefando e comentando sobre os assuntos mais diversos. Todos falavam de política e, ao mesmo tempo, ninguém tocava no assunto. Mais alto que as vozes as palavras eram as risadas e o tintilar do gelo navegando pelos copos. Pouco a pouco, cada homem ali se transformaria em amigo de outrem, não importando as imensas lacunas sociais criadas no convívio.
Ainda não havia começado a chover quando Emma uma mesura, dando a entender que deixaria o palco e se recolheriam. Novas notas começaram a pular entre gritos ululantes de plateia em frêmito, plateia suplicante, exigindo que ela permanecesse. Diferentemente de outros dias, a prostituta ignorou os chamados, colocou os pedidos de lado, e saiu, cruzou a cortina e desfez o ar lépido que tinha sob a ribalta.
De início, ouviram-se protestos, palavrões e tudo mais, logo depois, o episódio foi esquecido e cada concentrou-se no que estava fazendo. Um homem alto, dono de uma loja da tapetes, continuou a conversar com os amigos e contar as histórias de sua infância. Todos na mesa riam, como se não conhecesse as palavras que o árabe contava. Alguns – entre eles o judeu que estava também à mesa – chamavam-no de Persa, apelido que tentou desvencilhar-se com ameaças ininteligíveis, mas que acabou por dar-lhe fama e fortuna.
Persa estava entre os mais alegres e tamanha descontração era proporcional ao número de garrafas e garotas dispostas em sua mesa. O judeu, um homem pequeno, gordo e barba grosseira, ficara viúvo há três anos e, desde então, frequentava com certa assiduidade o cassino. Os filhos estavam todos morando fora do país e, portanto, nada o impedia de estar ali. Por sempre estar envolvido com a vida financeira da cidade, Joshua, esse era o nome do judeu, estava, com alguma frequência, isento de pagar pelo que consumia – fosse por estar com algum “amigo” ou por receber alguma honraria do dono do estabelecimento. Naquela noite, Joshua estava ligado a Persa e ao dono do Cassino.
Não muito longe dali, na mesa de pôquer, um homem vestindo preto, jogava com tamanha avidez, mas que, não obstante sua ganância pela jogatina, perdia quase tudo trouxera e não demoraria muita teria de pedir ajuda ao judeu. Ignorado pela maioria das mulheres da casa – e por alguns homens também – aquele homem era o Pároco. Sem temor, ele jogava como que de brincadeira, como se as fichas sobre a mesa não passassem de adereços que ajudassem a compor o cenário propício para que as coisas acontecessem.
Não era somente o Pároco que não exibia cautela, o ambiente de complacência recaía a todos, sem exceção. Giovanni era um homem pobre, um agricultor de avós italianos, mas que não fizera fortuna e ainda trabalhava sob o jugo dos mais ricos. Entre as paredes do cassino ele não era pobre, não se vestia feito camponês e não falava errado; transformava-se em um homem tão digno de respeito por quanto todos os outros.
II
Emma tinha deixado sua cidade, ao sua da Rússia há muitos anos. Ninguém sabia seu nome verdadeiro, mas, naquelas circunstâncias este assunto se transformara em algo morto e inerte, como algo que não precisava ser remexido. Na realidade, a prostituta não tinha uma beleza muito diferente da mulher cada homem que ia ao cassino, porém, o status criado ao estar com prostituta que figurava sobre os varões era algo a ser comparado com a riqueza que os mais abastados e, literalmente, afortunados, possuíam.
Sabia as palavras essenciais para se virar e isso já era o bastante. Nunca se dera ao trabalho de construir frases inteiras ou ler um livro que não estivesse em sua língua. Nada melhor que os autores russos, dizia. Joshua foi a primeira pessoa a receber na cidade, alugando a ela um pequeno quarto em uma pensão. Para poder pagar o abrigo, negociava o corpo – não somente com o judeu, mas com outros homens dispostos a enfrentá-la tal à Geni e Bola de Sebo.
Não lhe bastava dormir, era preciso comer. Semanalmente, Emma ia até a pequena fazenda de Giovanni para tratar da compra de alimentos. Por vezes, consegui pagar ao italiano com o dinheiro que recebia de outros, entretanto, em algumas ocasiões prometia pagar-lhe na semana seguinte, quando recebesse dinheiro que estavam a lhe dever – embora, ela jamais tivesse sido credora de alguém. Para pode fugir da dívida, Emma usava o corpo esguio e atraente.
Nenhum destes homens tinha coragem de mencionar o fato, os negócios escusos feitos à surdina, à socapa com um meretriz, fato que ajuda a manter segredo e não denegrir a imagem da forasteira que era abrigada pela cidade, chegando já devedora, tendo de custear com a própria vida os seus dias.
Emma tinha onde dormir, tinha o que comer, mas passava frio. Não bastassem os altos preços cobrados pelo judeu, a Russa precisava ainda se virar com os cobertores que ele lhe dispunha. Com a chegada do inverno, algumas semanas após o “desembarque” na cidade, ela precisou procurar uma das lojas do Persa. Não se interessava por tapetes, não queria nenhum adorno, somente cobertores para que frio lhe fosse mandado embora.
Nas primeiras vezes, Emma pagou a ele com dinheiro, dinheiro que recebia que Joshua e Giovanni, mas vieram as necessidades maiores, como a compra de fios e tecidos para que pudesse fazer, remendar e costurar suas roupas e, nessa hora, faltava o aparato financeiro, precisando apelar para os domínios possuídos pelo que o corpo lhe ensinara.
Aos poucos, Persa transformara-se em um frequentador costumeiro daquelas pernas e, assim como os demais se mantinha calado sobre as relações. Emma possuía a consciência de que era guardiã de um segredo importante e que, se relevado, tombaria toda a cidade.
Entrementes, assim como o corpo, há momentos em que as vacas magras atingem o espírito e quando esse momento chegou, Emma foi de chofre procurar o Pároco que a recebeu como filha, deu-lhe a Paz de Deus a abençoou para que pudesse fixar-se na cadeira da confissão com maior desenvoltura. Sinto-me só, dizia ela. Tenho todos os homens, mas não tenho nenhum, completou.
Explique-se, disse o Padre.
Em uma torrente, ela contara a ele tudo. Nada omitiu ou transgrediu. O Pároco ouviu – sibilando palavras contra aquela mulher, aquela pecadora feita Maria Madalena e que esperava nada mais que o perdão – e tentou refletir sobre as palavras que escutava, só que havia algo mais forte dentro dele que fazia com que a odiasse por um todo; um sentimento que a consumia e que, se pudesse, seria convertido à regra antiga, à lei que dizia que as prostitutas deveria ser recebidas com pedras.
O Pároco a colocou para fora, sem dizer uma única palavra. Emma sentiu que um problema de espírito não poderia ser resolvido com o corpo e foi embora. Decidira que não negociaria seus meandros por favores, faria dinheiro vivo com suas entranhas e colocou-se a caminho do Cassino, onde foi recebida como rainha – único lugar que a ela o valor que possuía, não como meretriz, mas como mulher.
Aqueles homens todos descansavam após lambuzar-se nela e colocavam suas costas sobre as poltronas, esvaindo-se da culpa que possuíam sobre o destino da russa.
III
No Cassino, realidade e sonho se confundia e, na maioria das vezes, se transformavam em uma coisa só, sem definição total do que era um e outro. Emma, talvez fosse a única pessoa ali dentro a ter plena consciência disso, sabedora, graças ao seu dever de enrodilhar os homens e criá-lo à sua imagem.
Os passinhos lentos com os quais deixou o casarão em nada lembravam seu ballet, sua fanfarronice de sempre. Já na porta de saída, Emma encontrou uma das meninas, Lady Godiva, que se aprontava o momento em que entraria no palco e encenaria um número musical cheio de gestos largos e exagerados.
Lady Godiva tinha uma história tão difusa quanto Emma, mas não guardara para si e colocara à frente de si própria como uma apresentação, um prólogo que explicava o porquê era o que era. Quando as duas se cruzaram, no exato momento em que começou a cair uma chuva e monótona, não trocaram uma só palavra, mas isso era sinal de que Godiva concordara e estava plena em relação à amiga.
Emma lembrou-se da galhofa de Lady Godiva de que ambas deveriam ingressar em um convento qualquer. Esse episódio se ligava, ao menos na memória de Emma, à anátema do Pároco e a si própria.
As duas nada tagarelaram, pois havia alguns minutos que Lady Godiva estava atrasada para estar sobre o palco e alguns dos homens pediam por ela. As primeiras fagulhas não foram percebidas, o farfalhar das faíscas foi abafado pela chuva. Quando o festão, enrolado ao pescoço de Lady Godiva se incendiou, todos os que estavam no Cassino puderam perceber que o fogo já tomava conta de boa parte do palco, dominando as cortinas e se esgueirando pelos cantos e, em poucos minutos, consumindo todo o casarão.